A casa assombrada

Diz a lenda que quem ousasse entrar na casa assombrada, seria amaldiçoado pelos espíritos que lá habitam há mais de 200 anos.
Não é daqueles sítios que quase nos magnetizam e nos puxam em sua direcção, mas devo admitir que exerce um certo fascínio e que dá mesmo vontade de dar lá uma espreitadela, sobretudo para matar a curiosidade que se vai instalando gradualmene.
- Supersticiosas, é o que as pessoas são. - Disse o Sr. Joaquim, com um meio sorriso.
- Isto não tem nada a ver com superstição. O que acontece lá é mesmo real. Olha o que aconteceu ao filho da Filó!
- O que aconteceu? - Perguntei, metendo-me numa conversa que era, à partida, para quem estivesse interessado. E eu estava.
Ambos olharam na minha direcção e o senhor, nos seus 75 anos, bem conservados, respondeu-me:
- O filho da Filó ousou meter-se naquela casa e desde então nunca mais foi o mesmo. Não tem sorte na vida. Em tudo o que se mete, sai fracassado.
- Isso é um disparate! - Contrapôs o Sr. Joaquim.
- Disparate? Não foi o único!
- Ó homem, só acredita nisso quem for muito limitado. As maldições não existem. Desde garoto que oiço esta história, mas tal como todas as histórias, esta tambem não passa disso mesmo.
Levantei-me, paguei a minha despesa e sorri-lhes.
- Não se deixe levar pelas histórias deste velho, menina. - Disse o Sr- Joaquim, dando uma palmada seca ao companheiro.
- Não se preocupe. Não sou supersticiosa.

Olhei para a casa, no meio do nada. Decadente, um pouco assustadora. Mas como as aparências não revelam detalhes, resolvi entrar.
Tudo o que vi foram paredes velhas, teias de aranha, uma escuridão terrível. O cheiro a mofo e a velho dominavam o ar. Retratos poeirentos e quadros enormes enchiam as paredes. Descobri objectos lindíssimos. Pequenos tesouros e pedaços de memórias que, curiosamente, ninguém ousava tirar.
Percorri a casa e não vi nenhum espírito nem ouvi nenhum ruido suspeito. Sentia uma ligeira pressão no peito. Nunca sabia o que poderia encontrar, mas fantasmas não era, de certeza. À medida que me ia habituando à escuridão e à "vida ausente" naqueles retratos e objectos, a pressão no peito ia desaparecendo. O medo estava a despegar-se de mim.
Saí de casa, sem qualquer maldição nos ombros. O mundo cá fora continuava exactamente igual.

No dia seguinte, voltei ao café.
- Está diferente hoje, menina.
- Estou? Deve ser do penteado novo! - Brinquei.
- A menina foi à casa, não foi?
«Ora esta, como é que ele sabe?»
- Fui.
- Pois fez muito bem! Como vê, não está amaldiçoada. - E dito isto, começou a rir-se.
Olhei-o com aquele olhar de quem pergunta alguma coisa sem dizer uma palavra.
- Eu sei, eu sei... Deve pensar que estou maluco. Mas o que se passa é que nesta aldeia, como em qualquer outra, as histórias são como as ervas daninhas: crescem de qualquer maneira e em qualquer sítio. E depois há sempre um acrescento ou outro que lhes dão vida. Aquela casa é apenas mais uma fonte de inspiração. Mas devo dizer-lhe que as pessoas acreditam em tudo o que envolve coisas obscuras, está a ver? E a verdade é que as pessoas que vão àquela casa nunca vêm igual.
- Eu vim.
- Não, não veio. Há pessoas que quando saiem de lá, vêm a sua vida reduzir-se. O filho da Filó, esse pobre coitado, nunca teve sorte na vida. Mas também nunca fez um esforço para mudar. Mantém-se preso às raízes. Não sabe o que é voar, percebe? Há outras pessoas que depois de lá entrarem apercebem-se que a vida é demasiado curta e que nós não somos objectos que permanecem no tempo. Cada pessoa identifica-se com alguma coisa naquela casa e é por isso que nunca saiem de lá da mesma maneira que entraram.
- Todas as histórias têm uma moral, é o que me está a tentar dizer.
- Sim.
- E qual é a moral desta?
- A moral é simples: às vezes precisamos de enfrentar os nossos medos, a escuridão, o ar frio e cortante, o coração que mais parece um tambor desenfreado dentro de nós, as teias de aranha, o medo do desconhecido, as casas assombradas que existem mesmo dentro de nós. Se não os vivermos, nunca mais conseguimos sair da capsula protectora que nos impede de pisar o risco. Somos amaldiçoados. E a menina não está almadiçoada. Vejo-lhe nos olhos um horizonte vasto e colorido.
Sorri-lhe e levantei o copo de sumo, num brinde silencioso.
- À vida! - Disse o Sr- Joaquim, piscando-me o olho.
Assenti.
À vida!

Comentários

b. disse…
mas infelizmente falta a coragem para enfrentarmos os nossos medos, a nossa propria escuridão!

*
Isa e Luis disse…
Olá menina linda,

simplesmente amei!
Mais uma lição de vida, que nos faz refletir.

Beijinhos muitos

Isa
Oi meu anjo,

Adorei mais uma vez "ler-te", nossa como me apaixonei à medida em que fui lendo.
Adorei mesmo.
Obrigado.
Desejo-te um lindo fim de semana e uma semana cheia de paz em teu coração.
Bjokas mil e xi - corações.
Mikas disse…
história lindissima!

à vida!

bjikos *
yora disse…
O maior medo que todos temos é o medo de ter medo. Enquanto não o superarmos não nos poderemos conhecer a nós próprios, e muito menos tudo o que nos rodeia...

Abraço (=
Oi meu anjo,

Hoje passei aqui apenas para te desejar um maravilhoso fim de semana e uma semana cheia de luz em teu coração.
Bjokas mil e xi - corações.
Brindemos portanto :
- Tears ! Sköl for fun ...

Não obstante, asseguro-te que aquela casa têm uma história : Singular, Única e verdadeiramente Impar !

(...)
Oi meu anjo,

Hoje passei apenas por aqui novamente para te desejar um lindo fim de semana e uma semana cheia de paz.
Bjokas mil e xi - corações.
Joel disse…
Fiquei deliciado com esta história, cada linha que lia, mais uma eu queria ler...

Com os melhores cumprimentos

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