Que a nossa luz nunca apague.



Nestes dias de agitação natalícia, em que se fazem os preparativos para o tradicional jantar de Natal, em família, esquecemo-nos momentaneamente dos problemas quotidianos e das mágoas carregadas ao longo do ano.
De repente, as pessoas tornam-se incrivelmente amorosas e reencaminham mensagens de boas festas e de votos de um ano fabuloso. De repente, querem apagar tudo de mal que fizeram aos outros durante o ano, num ato teatral e efémero de mudança profunda de carácter. De repente, lembram-se de fazer caridade esporádica a alguém, simplesmente porque é Natal, como se nesta altura houvesse uma obrigação social em fazer o bem ao próximo. O resto do ano não conta, porque se anda embrenhado na redoma mundana que nos mantém numa realidade à parte da realidade dos outros.
Nesta altura, as pessoas fazem um ato hipócrita de contrição e perdoam os outros só porque sim, fazendo questão de vociferar aos quatro ventos o quão boas pessoas são. Pelo menos uma vez por ano, põem em prática o que alegam em teoria o ano inteiro.
Corre-se à procura de prendas de última hora, porque fica mal não oferecer “qualquer coisinha”. Andamos atarefados a atender telefonemas, a responder mensagens, a tirar selfies, e a aproveitar da abundância com que somos agraciados diariamente, mas que só nestes dias tomamos consciência do que temos.
Foi a sair de uma visita hospitalar, que viria a ser a última, que pensei na verdadeira ausência de sentido daquilo que representa o Natal. Celebra-se uma vez por ano a reunião da família, o amor ao próximo. Engolem-se sapos e fazem-se fretes só porque “tem de ser”. Ensina-se as crianças para serem educadas com os tios e primos que vêm de longe. Promove-se a ideia de que natal é sinónimo de prendas caras, de IPhones, tablets, WII, playstations, laptops de última geração. Entra-se numa espécie de competição anómala de quem dá o presente mais lindo, mais caro, mais incrível. Ensina-se que o que importa é a quantidade de presentes recebidos, em vez da quantidade de afetos, mimos e brincadeiras em família.
Saí do hospital, sentindo que estava a mover-me em câmara lenta nos corredores que pareciam nunca mais acabar, a ouvir as pessoas como se estivesse a acordar depois de um sono profundo, a sentir os olhares inexprimíveis das pessoas que ali ficavam enquanto eu tinha a liberdade de sair pelos meus pés. Saí com aquela certeza sufocante de que, para muitos, o Natal não chegará. Para outros, será apenas mais um dia de trabalho, igual a tantos outros, privados das suas próprias famílias. Haverá ainda quem não celebre o Natal e ache que é uma época capitalista, de puro consumismo, e haverá aqueles que só continuam a tradição porque é uma tradição, mas com lugares vazios à mesa e uma série de memórias a invadir-lhes a mente. E no meio de tudo isto, andarão os altruístas, que partilharão estes dias com quem tem carências aparentemente perenes. Cada qual a viver o natal à sua maneira, mais ou menos feliz, mais ou menos abundante, mais ou menos agridoce.
Naquela espécie de dormência e de sensação de perda coletiva, pensei que muito pouco nesta vida faz sentido. E aquilo que faz sentido, parece ser completamente banalizado e desprovido de valor para a maioria. No meio das perdas e dificuldades que cada um de nós atravessa, o que significa verdadeiramente desejar “boas festas”?

Que os nossos corações se aqueçam e que valorizem quem realmente importa e nos ama incondicionalmente. Essas pessoas são, na verdade, as melhores prendas que podemos ter, todos os natais, todos os dias do ano, porque nunca são garantidas nem vitalícias. Hoje estamos cá, a partilharmos vida, alegrias e tristezas, conquistas e fracassos, amores e desamores. Amanhã, não sabemos. E este é o mais impertinente e assustador ponto de interrogação das nossas vidas.

Que cada um de nós celebre esta quadra da forma mais intensa possível. E que todos os nossos corações, ainda que retalhados, se inundem de amor.

Que a nossa luz nunca apague.

Bom Natal.

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